“Massa fiada”
Desceu a ladeira em passo apressado.
Ia às compras. E a mãe calculou-lhe o tempo de demora.
Como ansiava por estar um momento, fugaz que fosse, com o seu amor!
Contou pelos dedos os minutos, ou os segundos, que podia poupar no sapateiro, onde as socas ficariam para deitar umas tachas; no Correio, onde ia mandar uma carta por avião para a Tia que estava no Brasil; no «Mocho», onde ia comprar um metro e meio de plástico para forrar o «louceiro»; e no Zé da Loja, donde levaria um kilo de açúcar, dois de sal, três de massa pevide, dois de arroz e um de massa fiada.
Aquele quarto de hora de avanço podia muito bem dar-lhe para bater à porta da amiga da Quinta da Fraga. Dar-lhe-ia as «boas – tardes» e receberia o cântaro com que iria à mina buscar-lhe água. Era o sinal de que logo na esquina lá estaria «o amor da sua vida».
Dobrado o muro, o cântaro ficava pousado no chão. E os dois ficavam derretidos num tão apertado abraço e a comerem-se de beijos, sôfregos e doces!
Traçavam-se pela cintura. E lá seguiam até à fonte, trocando olhares, beijinhos e promessas de amor.
Enquanto o cântaro se enchia vagarosamente de água, deitados no chão de ervas secas, saciavam-se de amor e de saudades.
O tempo era contado pelo palpitar dos corações.
A hora da despedida era assim adivinhada.
Não se podia deixar que a mãe desconfiasse de nada.
A «Guerra em África» arrebanhava os mancebos a qualquer hora.
A ele afligia-o a incerteza do regresso.
Partiu para «o Ultramar».
Voltaram a ver-se quarenta anos depois!...
Romeiro de Alcácer
“CREDO EM CRUZ!”
Novembro ainda não findara.
Estava um dia de sol de Outono com um frio gelado de Inverno.
O conforto do astro-rei era uma tentação, fazia-nos sair à rua para o apanhar.
Logo nos colhe de surpresa a traição do vento norte, que, mesmo fraco, nos gela as mãos e a cara, e nos põe lágrimas nos olhos.
Cem passos dados pelo passeio, e chegaram para obedecermos à intimação do frio e regressar a dentre – paredes.
A meia volta deu-nos um susto. O vulto que se cruzou connosco nem soubemos se era corpo ou sombra.
O nosso passo de volta cruzou-se com o seu passo de ida.
Só foi tempo de lhe apanharmos o rosto.
Voltámos a cabeça. O cabelo, o corpo e o andar eram o dela.
O espanto tolheu-nos o passo. Ficámos parado a vê-la afastar-se.
Credo em cruz!
Desapareceu na esquina da rua com o mesmo perfil e aprumo com que se cruzou connosco.
Nem um leve voltar de cabeça; nem um gesto mais amplo de um braço, nem um passo mais largo, ou estreito ou menos acertado, a dar sinal de nos ter reconhecido.
O sol pareceu rir-se de nós, e o frio ficou mais gelado!
Chega de recordação! Chega de saudades!
Memória, por que não te apagas?!
Romeiro de Alcácer
“A rosa de Gabilondo“
O amor floriu no coração daqueles jovens.
As sombras medievais ainda ocupavam o céu das mentes de pais ibéricos já em pleno século xx.
Às dez da noite, a filha já prometida – noiva – tinha de estar porta – de – casa – dentro.
Passavam cinco minutos das dez.
O pai andaluz, em apoplexia de melindre, - Oh! Infame falta de respeito! – assomou-se à porta e “ralhou “ com mais barulho que o pai do céu.
Ela, banhada em lágrimas.
Ele, encharcado de humilhação.
Mas ambos aguardaram com acalentada esperança o momento de ser reconhecido e abençoado o seu direito à felicidade.
E foram felizes!
E a doença invejou-os. Atacou Maitê.
A dor e a angústia pelo sofrimento da sua querida combatia-a o basco com a fé e as preces à Virgem.
Certo dia, mandou, o basco, um ramo de rosas vermelhas ao deão da Igreja de N. Senhora de....
Maitê subiu ao reino dos anjos.
No dia da procissão das Festas em honra de Santa Marta, o andor, sempre tradicional e igualmente enfeitado, levava uma rosa vermelha.
Qual gota de sangue caída da chaga da mão de Jesus, sobressaía dos lírios que adornavam o sopé da imagem.
Aquela rosa tocou os olhos e o coração de todos quantos olharam o andor.
Alguns anos após, o deão – amigo fez entender ao “coração-saudoso” da “sua Maitê” o simbolismo, a espiritualidade, a eloquência daquela rosa que todos os anos está no andor de Santa Marta.
É a Rosa de Gabilondo!!!
Romeiro de Alcácer
“Não te absolvo!”
Era jovem. Ainda mal entrada na adolescência.
Do grupinho das suas amigas havia uma já mais crescida, quase mulher, a namorar com um rapaz que até já ia a sua casa.
O povo falava. O padre desconfiava.
Um dia “correram os banhos” pela Freguesia.
A sua amiga mais crescida, quase mulher, ia casar com o namorado que até já ia lá a casa dela.
A mais crescida convidou as amigas para o casamento.
O padre avisou a Aninhas para não ir a essa festa.
A Aninhas não deu ouvidos ao padre.
Algum tempo depois era Dia de Confissões.
A Aninhas foi confessar-se.
Ajoelhou-se junto ao confessionário. Benzeu-se. Rezou o acto de contrição. E, quando ia para abrir a boca para os pecados saírem, só teve tempo pra se levantar e sair da Igreja a chorar.
Foi o espanto entre crentes, beatas e pecadores arrependidos.
Derreada com as inquietações e as perguntas de todos, respondeu-lhes:
- o senhor padre , mal levantou os olhos do breviário, olhou para mim e disse-me:
-“Desaparece-me da vista! Não te dou a absolvição”!
Assustados, todos recuaram ao mesmo tempo. E bradaram:
-“Credo in cruz, santu nome de jAsus”!
Mas “atão”?!... - exclamaram com tremendo espanto e em uníssono.
E a Aninhas, lavada em lágrimas, tolhida pela vergonha, aflita com os soluços, foi soletrando:
-“O senhor padre disse que não me absolvia porque eu lhe tinha faltado ao respeito por ter ido ao casamento da Laida”!
No adro, encostado a uma das tílias, estava o Júlio Tralhão, jovem espigadote, estudante no Liceu, e que até «tinha andado no Seminairo» até ao 4º ano. Fazia horas, à espera da «sua» Tina.
Desatinado com o que acabara de «ber e de oubir», levanta a voz e atira para os crentes, beatas e pecadores arrependidos:
-“Ah! Afinal não é Deus quem dá absolvição aos pecados! É o padre, conforme se sente satisfeito ou consolado nas suas vontades, desejos e caprichos!"
Pecadores arrependidos, beatas e crentes “meteram o nariz no chão “ e foram cada um para seu lado.
Passados alguns dias, o padre foi de visita a casa dos pais da Aninhas.
Apetecera-lhe uma boa merenda e uma boa pinga.
Nada como ir a casa dos pais da Aninhas, claro está!
Respeitoso e servil, o pai da Aninhas lá ia enchendo o copo ao padre e empurrando para a gula deste mais uma rodela de salpicão, outra de linguiça e duas fatias de presunto, depois de uma alheira frita na sertã e duas assadas nas brasas da lareira já estarem bem acamadas no papo do cura.
Quando o pai da Aninhas teve de ir buscar mais uma caneca de meia canada ao pipote especial, aproveitou para passar pela varanda, onde estava a Aninhas em conversa com umas amigas e com homens e mulheres a cuidar dos trabalhos no quinteiro.
O Ti Zé da Eira disse à filha:
-“Bá! Faz as pazes com o senhor padre. Bai à adega buscar um copo de binho e ofrece-lho”.
- “Nem um copo d’Água”! - gritou, alto e bom som, a rapariga.
Os homens e as mulheres no quinteiro e as amigas na varanda escutaram o que disse o pai d’Aninhas e ouviram o grito da moçoila.
E por toda a Aldeia se espalhou o som das palmas que as da varanda e os do quinteiro desataram a bater!
Romeiro de Alcácer
(1) e (2) - Fotos de Tiago Ferreira. Tratamento digital, Berto Alferes.
“Par’Além dos meus olhos!
Descia a encosta das “Carvalhas” com a pressa da pontualidade, com a angústia do teste, com o consolo da torrada de pão centeio e da caneca de cevada feitinhas pela Avó, e com a esperança de se encontrar, no cair do dia com a cachopa do seu encanto.
No lusco-fusco mais carregado pela sombra das árvores da rua, ou no virar da esquina de onde não se visse vivalma a assomar da curva mais próxima, roubava um beijo trocado, carregadinho de alento para mil sonhos e projectos.
Era no tempo em que o amor era proibido, o beijo pecado mortal e o sonho condenado a degredo.
Um palmo de terra era riqueza, e um diploma coisa estranha para a maioria dos filhos de deus.
E Angola desenhava-se no horizonte imediato da carreira dos mancebos.
No final do dia, a ida à fonte, a buscar um cântaro de água fresca para se fazer a ceia, eram as «trindades» do arrulho, do xi - coração apertadinho com o brilho do arco-íris do olhar, do “amo-te” sussurrado pelo silencioso sibilo de uma boca feita coração, e do sinal de que nem o luar, o nevoeiro ou o relento impediriam o beijo e o abraço de promessa, antes da luz da vela ou da candeia se apagar.
A mãe não aprovava.
O pai, contrariado, aprovava a mãe.
Ele era bom rapaz!
Ela era boa rapariga!
Trinta anos passados, o rapaz encontrou-se com os pais da rapariga.
- “É a Vida! É a Vida!” - disse–lhe o pai, a enganar uma lágrima furtiva com um sorriso de bondade.
Um cântaro de consolos encha o coração dessa cachopa!
Para além dos meus olhos!...
Romeiro de Alcácer
castelo de monforte de rio livre
Águas Frias - Rio Livre - Tino
Rêverie Art - Fernando Ribeiro
Sítio das Ideias-Lamartine Dias
Andarilho de Andanhos-S. Silva
Asociación Cultural Os Tres Reinos
Amnistia Internacional - Chaves
Amnistia Internacional - Blogue
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RuinArte - Gastão de Brito e Silva